Amanualidade

Este documento foi elaborado por Rodrigo Freese Gonzatto.

O conceito de amanualidade em Álvaro Vieira Pinto

Citações no livro: Consciência e Realidade Nacional [volume I: A consciência ingênua]

  • A consciência não se compreende como simples representação passiva, retrato imóvel do real estranho. É, na verdade, a percepção da existência do mundo enquanto espaço para a ação, campo de projetos possíveis. Mas, se o mundo só se desvenda, reproduzido na representação, à medida que se oferece como âmbito de trabalho a ser exercido sobre ele, segue-se que a consciência autêntica só vê o mundo enquanto modificável, apreende-o como não sendo exclusivamente a aparência imóvel do dado imediato, concebe-o na perspectiva das transformações que lhe serão impressas pelo projeto mediante o qual é captado. É, por isso, uma visão dinâmica, no duplo sentido de revelar a mobilidade própria do real e de ser produto de uma percepção que só se cria pela intenção de operar ativamente a transformação desse real.” (VIEIRA PINTO, 1960 [I], p.60)
  • “Os pensadores, se não virem a relação fundamental que liga a prática ao esforço produtivo, não descerão da esfera das generalidades. É neste sentido que nos parece justo dizer que as filosofias da existência estão capacitadas a trazer uma contribuição ao esclarecimento do tema. Cremos ser útil iluminar a noção do trabalho pela noção de amanualidade, despojada esta da significação idealista que assume nos sistemas que a introduziram. A associação desses dois conceitos poderá conduzir-nos a perceber o processo de formação da consciência autêntica da realidade. Para consignar somente o resultado da nossa reflexão, diremos que o caráter, necessariamente transfigurador, do trabalho é a via de acesso à realidade. Por ele o mundo se abre à consciência, e isso tanto mais perfeitamente quanto opera sobre partes cada vez mais amplas do real. De fato, não há outro modo de captar o real senão introduzir-se na sua mobilidade, esposando-lhe a dinâmica: o meio único de realizar a união do homem com o mundo é a ação. Supor que a consciência discerne num átimo a realidade exterior, é fazer dela um aparelho fotográfico, limitado a tomar imagens que, como os instantâneos da arte fotográfica, reproduzem tudo, menos o essencial, o movimento do objeto.” (VIEIRA PINTO, 1960 [I], p.61)
  • “Viram os teóricos daquela corrente que o mundo se apresenta ao existente humano como espaço de ações possíveis mediante objetos dispostos ao seu redor, a serem tomados como utensílios, e que, portanto, a determinação mais imediata dos entes é a de se darem como algo que “está a mão”, caráter esse que foi chamado de “amanualidade”. Com efeito, a objetividade se faz acessível ao homem mediante a amanualidade com que se apresentam a nós os entes circunstantes preexistentes à ação. Com estes, graças à propriedade de sem o que está ao alcance da mão, e que mais amplamente ao alcance da nossa percepção sensível, é que se constitui na consciência a representação do muno, cujo primeiro círculo, imediato, é este, tendo por fundo o horizonte da objetividade indeterminada, que só aos poucos se vai configurando, à mediada que progride nossa faculdade de apreensão – ou melhor, de “preensão”, de “agarrar com a mão” – dos entes que lá se encontram. Este conceito é fecundo e foi largamente explorado pelos fenomenólogos existenciais, embora servindo a uma concepção equivocada, idealista, metafísica; parece-nos, porém, que um dos seus aspectos capitais não foi devidamente ressaltado É que, em imenso número de casos, os objetos que se revelam como coisas, em virtude do caráter manual, são na verdade objetos fabricados. São dados à capacidade de manuseio do sujeito, mas para isso tiveram antes de ser produzidos. E só puderam ser produzidos porque a matéria de que são feitos e todos os demais ingredientes se apresentaram à ação do agente criador segundo uma forma de manuseio mais primitiva, a forma das substâncias brutas.” (VIEIRA PINTO, 1960 [I], p.67-68)
  • “O caráter de amanualidade implica a gradação nos tipos de manuseio e não se mostra, conforme deixa crer a teoria, como propriedade unívoca. Mas, que se esconde por trás desta gradação do “amanual”? O trabalho. Uma coisa é mexer-se em um pouco de barro, outra é segurar uma vasilha para beber, e outra ainda é tomai-la nas mãos para apreciar a beleza dos desenhos e do colorido que lhe foi dado pela arte cerâmica. Nos três casos, imaginados como exemplo, temos a mesma matéria, mas três graus distintos de manuseio, representando três modalidades de ser, com tudo quanto de significado particular há para cada um; e o que determina a diferenciação entre esses três modos é a operação do trabalhador, que imprime em cada caso à substância bruta original propriedades que condicionam as diferentes possibilidades de manuseio.” (VIEIRA PINTO, 1960 [I], p.69)
  • “Na análise da percepção de grande parte das coisas que compõe o nosso mundo, é indispensável acentuar, porque quase sempre esquecido, este traço: o de que tais coisas foram feitas, custaram trabalho. Este é parte essencial da constituição e deve ser integrado nelas ao julgarmos a sua realidade. […] O mundo exterior aparece assim como mundo natural primitivo, quando, na verdade, grande parte dele, precisamente aquela onde cada vez mais se move a existência civilizada, como a seguir esclarecemos, é produzida pela ação criadora do homem. O conceito de amanualidade pode obscurecer-nos uma face significativa da realidade das coisas, omitindo o fato de serem muitas delas produtos de arte, uniformizando falsamente a objetividade. Contudo, com as devidas retificações, merece ser acolhido, porque nos encaminha a uma concepção ativa, e não contemplativa, da realidade, mostrando que o trabalho exercido sobre o mundo “que nos está mão”, o nosso mundo, é o que o transforma eficazmente.” (VIEIRA PINTO, 1960 [I], p.69)
  • “O filósofo da existência examina a presença do homem no mundo como se este, que aí está e com o qual o homem se vai defrontar, fosse pura e simplesmente dado, quando na verdade é, em grande parte, feito. Ora, se é feito, isso significa duas coisas: primeiro, que é feito pelo trabalho, e segundo, que, por essa razão, é histórico. Ambos estes aspectos são olvidados na formulação do conceito de amanualidade, que permanece assim um item da epistemologia abstrata, não chegando a encarnar-se em propriedade, referida a coisas concretas. […] a noção de amanualidade, e com ela a da própria objetividade do mundo, ingressa na concepção da prática. O manual do objeto é, visto como resultado de operação laboriosa, ao cabo da qual algo é dado porque foi feito. A qualidade de “feito” incorpora ao objeto toda a soma de trabalho que custou, não o trabalho de forças naturais, cegas e fatais, e sim esforço humano. É pois deste último que resulta o manual do objeto fabricado, e se, como afirma a teoria, é no fundamento do “estar a mão” que se dá a possibilidade de conhecimento do seu ser, pode dizer-se que o objeto é sempre o produto da mão que o faz, dado à mão que o conhece […] Descobrindo o significado amanual do objeto como revelação do esforço produtivo, descobre-se ao mesmo tempo a sua necessária determinação temporal. Faltou ao conceito existencial de amanualidade a constante vincularão à dinâmica histórica. O manual do mundo é sobretudo o manual do conjunto de utensílios que determinado grau do processo cultural chegou a produzir. […] A amanualidade do ente é variável historicamente; a que se pratica em certo momento é aquela que permite aos homens desse tempo ter aceso à objetividade do mundo, tal como se encontra nessa fase da evolução histórica. Depende estritamente do tipo e da quantidade dos objetos fabricados nessa determinada etapa da cultura. Com efeito, é em função do conhecimento, já possuído, das coisas que alguma outra vem a ser descoberta ou é produzida; mas conhecimento significa comércio do ser humano com os entes interiores ao mundo, significa a “preocupação” e familiaridade manual prática com certo tipo de mundo circunstante, pelo trato com os objetos que o constituem. Por conseguinte, o aparecimento de todo novo objeto, pela revelação da sua presença “à mão”, supõe um patrimônio de percepções em aumento constante, que é a própria cultura como fato histórico.” (VIEIRA PINTO, 1960 [I], p.70)
  • “Cada indivíduo encontra o mundo povoado pelos objetos que a época na qual nasceu pode produzir, na fase em que se acha o processo econômico e cultural da sua comunidade. A revelação do mundo, pelo amanual das coisas, se faz, portanto, trazendo sempre o caráter histórico da manufatura e se refere às forças de produção, às relações de produção e ao grau de avanço intelectual existentes.” (VIEIRA PINTO, 1960 [I], p.71)

 

A pesquisa sobre o conceito de amanualidade

O conceito de amanualidade foi inicialmente resgatado por Roux (ONDE NA OBRA DELE?), mas foi realmente evidenciado na obra de Freitas (1993, 2005, +DVD). Nos pusemos a estudar o conceito na pesquisa de mestrado de Rodrigo Gonzatto, pela identificação realizada por Luiz Ernesto Merkle (orientador) de sua proximidade com o conceito heideggeriano de amanualidade, debatido nas áreas de Interação Humano-Computador e Design de Interação.

Contexto sócio-histórico no qual AVP desenvolve o conceito

  • “Como ele acreditava que o manuseio do mundo continha e induzia a consciência crítica à plenitude histórica, crença partilhada com quase todo universo artístico-cultural brasileiro, era necessário que as massas ascendessem aos patamares mais desenvolvidos de trabalho. Pelo acúmulo de trabalho acumular-se-ia desenvolvimento também. Em razão disso, o ponto de vista do trabalhador deveria ser privilegiado, porque o homem do trabalho era consciente das verdadeiras contradições a serem enfrentadas naquele momento histórico, em virtude da sua proximidade com a realidade. Urgia disseminar uma civilização urbana e industrial; passar do mais atrasado para o mais avançado, e essa era uma revolução que só as massas poderiam realizar.” (FREITAS, 1993, p.31)
  • “Não há como negar, todavia, que a própria ideia de ponto de vista passava por clivagens. Se o povo começava a reconhecer-se nas telas, nos programas de rádio, no crescente mercado editorial, na crítica artística, nos inúmeros veículos em que comunicação e cultura se encontravam, o ensejo de reorganizar o futuro e trazer as massas para o seu interior tornava ousado, até mesmo revolucionário em alguns casos, insistir e inovar nas amostragens sobre o nacional e o popular. A respeito, conferir Arantes, 1991; Arrabal, 1983; Berlinck, 1984; Gerber, 1982; Jameson, 1992; Ortiz, 1991; Pécaut, 1990; Ramos, 1987; Schwarz, 1989.” (FREITAS, 1993, p.31 *esta é a nota de rodapé n.4)